O imam oculto e a escatologia (Henri corbin)
- centroimammahdi
- 22 de jul. de 2019
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Trecho extraído do livro "História da filosofia islâmica"
Este tema, em que culminam a imamologia e sua hierohistória, tem uma especial importância para a filosofia profética. Sem dúvida, a ideia do Imam Oculto foi projetada sucessivamente sobre vários Imames, mas não poderia ficar definitivamente configurada senão centrando-se na pessoa do Duodécimo Imam, com a que chega a sua culminação como Pleroma do Imamato. Os textos que a ele se referem, tanto em persa como em árabe, são consideráveis. (Recolheram-se as fontes: Saffar Qommi, 290/902, narrador e testemunha do XI Imam; Kolayni e seu discípulo No’Ani, século IV/X; Ibn Babuyeh, 381/991, cuja informação pro-cedia de uma testeunha contemporânea, Hasan Ibn Mokteb; Sheykh Mofid, 413/1022; Muhammad b. Hasan Tusi, 460/1068. As principais tradições estão recolhidas no volume XIII da enciclopédia de Majlisi. Todavia, em nossos dias, aparecem frequentemente no Irã livros sobre este tema: Elzam al-Nasiv, de Sheykh Ali Yazdi; Al-Kitab al-Abquari, de Allameh Nehavandi, etc. Somente algumas páginas de todo este material tem sido traduzidas ao francês.
Meditada por todos os representantes da teosofia xiita (‘irfan-e shi’i), a ideia fundamental é a já formulada: assim como o ciclo da profecia alcança sua culminação com o selo dos profetas, assim também a walayat (cuja linha sucessória corre paralela, de período em período, à da profecia) tem seu duplo selo no Imamato Muhammadiano: o selo da walayat geral na pessoa do Imam (Ali Ibn Abi Talib), o esotérico dos esoterismos anteriores, na pessoa do XII Imam. Como dito por um mestre sufi xiita iraniano, ‘Aziz Nafasi (séc. VII/XIII), discípulo de Sa’doddin Hamayeh:
“Milhares de profetas, vindos anteriormente, contribuíram sucessivamente para instauração da forma teofânica que é a profecia, e Muhammad a culminou. É agora o momento em que a walayat (a iniciação espiritual) se manifesta com as realidades esotéricas. Agora, o homem de Deus em cuja pessoa se manifesta a walayat é o sahib al-zaman, o Imam deste tempo.”
Sahib al-zaman (o que domina este tempo) é a designação característica do Imam Oculto, “invisível aos sentidos, mas presente nos corações dos fiéis”, que polariza tanto a devoção do piedoso xiita como a meditação do filósofo, e que era filho do XI Imam, Hasan ‘Askari, e da princesa bizantina Nargis. Chama-se-lhe também de “o Imam Esperado” (Imam montazar), e “o Imam da Ressurreição” (Qa’im al-Qiyamat).
A hagiografia do XII Imam é abundante de graços simbólicos, arquetípicos, referentes a seu nascimento e ocultação (ghaybat). Digamos que a crítica histórica não encontrará aqui seu caminho, pois do que se trata é do que denominamos hiero-história, algo muito distinto do que esta crítica histórica (historicista) busca. É necessário proceder aqui do ponto de vista fenomenológico: há que descobrir as intenções da consciência xiita para ver, com ela, o que ela mostra a si mesma desde suas origens.
Devemos nos limitar aqui ao essencial, recordaremos que o XI Imam, Hasan ‘Askari, retido mais ou menos como prisioneiro pela polícia abássida no acampamento de Samarra (a uns 100 km ao norte de Bagdad), morreu ali com 28 anos de idade, em 260/873. Naquele mesmo dia desaparecia seu filho, que contava então cinco anos ou pouco mais, e começou o que se chama a “Ocultação Menor” (ghaybat soghra). Esta simultaneidade tem um profundo sentido para o sentimento místico. O Imam Hasan ‘Askari se propõe aos seus como símbolo de sua tarefa espiritual. O filho de sua alma se torna invisível desde o momento em que ele deixa este mundo, e a alma de seus adeptos deverá iluminar suas parusías, isto é, seu “retorno ao presente”.
A Ocultação do XII Imam se realiza em duas fases. A ocultação menor durou setenta anos, durante os quais o Imam Oculto teve sucessivamente quatro na’ib ou "representantes", por meio dos quais seus xiitas podiam comunicar-se com ele. A um deles, ‘Ali Samarri, ordenou, em uma carta, não escolher sucessor, pois havia chegado o tempo da “Grande Ocultação” (ghayba kobra). As últimas palavras de seu último na’ib (330/942) foram: “De agora em diante, tudo incumbe somente a Deus”. Assim começa a história oculta do XII Imam. Obviamente, esta história não pertence (simplesmente) ao âmbito do que chamamos historicidade de fatos materiais. No entanto, preside a consciência xiita desde mais de dez séculos e é a história mesma desta consciência. A última mensagem do Imam o preservou de toda impostura, de todo pretexto tendente a pôr fim a esta espera escatológica, à iminência do Esperado (este foi o drama do babismo e do bahaísmo). O Imam Oculto, até o momento da parusía, não é visível senão em sonho, ou em manifestações pessoais que têm o caráter de acontecimentos visionários (os relatos sobre estes acontecimentos são numerosos), que não suspendem o “tempo da ocultação” nem se inserem na trama material da história “objetiva”. Ao ser o Imamato o esotérico de todas as revelações proféticas, é preciso que o Imam esteja simultaneamente no presente, no passado e no futuro. É preciso que haja nascido já. A meditação filosófica trabalhou até nossos dias, particularmente na escola shaykhia, sobre o sentido desta ocultação e da esperada parusía.
A ideia do Imam Oculto conduziu os mestres da escola shaykhia a se aprofundarem no sentido e no modo desta presença invisível. Aqui de novo, o mundus imaginalis (o ‘alam al-mithal) assume uma função essencial. Ver o Imam na terra celeste de Hurqalya (compare-se com a “Terra de Luz”, Terra Lúcida do maniqueísmo) é vê-lo onde em realidade está: em um mundo simultaneamente concreto e supra-sensível, e com o órgão que a percepção de um mundo assim requer. O que o shaykhismo estabeleceu é de certo modo uma fenomenologia da ghaybat. Uma figura como a do XII Imam não aparece nem desaparece segundo as leis da história material. É um ser sobrenatural que tipifica as mesmas aspira-ções profundas que correspondem, em um certo cristianismo, à ideia de um puro spiritualis christi.
Depende dos seres humanos que o Imam julgue se deve aparecer-lhes ou não. Sua aparição é um signo mesmo de sua renovação, e aí se encontra, em última instância, o sentido profundo da ideia xiita de Ocultação ou Parusía. São os homens que velaram-se a si mesmos ao Imam, fazendo-se incapazes de vê-lo, por haverem perdido ou paralisado os órgãos de “percepção teofânica” que fazem possível “o conhecimento pelo coração” definido na gnoseologia dos Imames. Não tem, pois, nenhum sentido falar da manifestação do Imam Oculto enquanto os homens sejam incapazes de recolhecer-lhe. A parusía não é um acontecimento que possa surgir repetinamente um belo dia. É algo que ocorre dia a dia na consciência dos seus fiéis xiitas. Aqui, pois, é o esoterismo que rompe o imobilismo ascendente do ciclo da walayat. Segundo um célebre hadith, o profeta declarou:
“Quando não restar ao mundo um só dia de existência, Deus estenderá este dia até que se manifeste um homem de minha posteridade; seu nome será meu nome, e sua denominação, a minha; ele encherá a terra de harmonia e justiça, como até então ela esteve cheia de violência e opressão.”
Este dia que se prolonga é o tempo da ghaybat, e este anúncio explícito propagou seu eco por todas as idades e em todos os graus da consciência xiita. O que nele perceberam os espiritualistas é o anúncio de que o advento do Imam manifestará o sentido oculto de todas as revelações. Será o triunfo da ta’wil (a hermenêutica islâmica) que permitirá ao gênero humano encontrar sua unidade, assim como, no decorrer da ghaybat, o esoterismo possui o segredo do único “ecumenismo” ver-dadeiro. É por isto que o grande sheikh sufi e xiita iraniano já citado, Sa’doddin Hamuyeh (séc. VII/XIII) manifestava: “O Imam Oculto não aprecerá até que sejamos capazes de compreender, até as correias das sandálias, os segredos do tawhid”, isto é, o sentido esotérico da unidade divina.
Este segredo é precisamente o Imam Esperado, o Homem Perfeito (al-insan al-kamil), o Homem Integral, “pois é ele o que faz com que todas as coisas falem e
que cada coisa, tornando-se viva, transforme-se num umbral do mundo espiritual. A futura aparição do Imam pressupõe, pois, a metamorfose do coração dos homens; depende da fidelidade de seus adeptos que se realize progressivamente esta parusía, por seu próprio ato de ser.
Daqui deriva toda ética de javan-mard, o “cavaleiro espiritual”, ideia que engloba todo o ethos do xiismo, com o paradoxo de seu pessimismo e desesperança afirmando a esperança, pois sua visão abraça por ambas as partes o horizonte da Metahistória: a pré-existência das almas e a ressurreição (Qiyamat) que é uma transfiguração das coisas e cuja antecipação determinava já toda a ética do antigo Irã zoroatrista.
Até agora, o tempo da “Grande Ocultação” é o tempo de uma presença divina incógnita, e precisamente por nunca poder converter-se em objeto, em coisa, desafiando toda socialização do espiritual. Por isto mesmo também ficam incógnitos os membros das hierarquias místicas esotéricas (Nohaba e Noquaba, nobres príncipes espirituais, autad e abdal), bem conhecidas do sufismo, mas das quais nunca pode esquecer-se que seu conceito mesmo deriva historicamente da ideia xiita de wylayat. Pois estas hierarquias têm sua origem no polo dos polos, o Imam; concernem a este aspecto esotérico da profecia cuja fonte é o Imam. Em efeito, seus nomes figuram já nas conversas dos Imames IV e VI; assim mesmo, o Imam, dialogando com seu discípulo Komayl, evoca em termos precisos a sucessão dos sábios de Deus que, século após século, são com frequência ignora-dos pela massa dos humanos. Silsilat al-‘irfan, a “Sucessão da Gnose”, irá dizer mais tarde: são todos aqueles que desde Set, filho de Adão, até os Imames muhammadianos, juntamente com todos os que os reconhecem como guias, transmitiram o esotérico da Profecia Eterna. Mas a realidade essencial de seu ser (sua haqiqat) não pertence ao mundo visível em que reinam as potências da coação; formam uma pura Ecclesia Spiritualis; não são conhecidos senão por Deus.
Como se sabe, o profeta Muhammad foi identificado, como antes o que havia sido Mani, como o Paráclito. Mas, dada a homologia entre o selo da Profecia e o selo da Wylayat, a imamologia mantém a ideia do Paráclito como visão por vir. Vá-rios autores xiitas (Kamal Kashani e Haydar Amoli, entre outros) identificam explicitamente o XII Imam, o Imam Esperado, com o paráclito cuja chegada é anunciada no Evangelho de João, texto ao qual fazem referência explicitamente. O advento do Imam-Paráclito inagurará o reino do sentido espiritual puro das revelações divinas, isto é, a religião da Verdade que é a Wylayat Eterna. Por conseguinte, o reino do Imam preludia a Grande Ressurreição (Qimayat a-Qimayat). A ressurreição dos mortos, como diz Shams Lahiji, é a condição que peritirá que cheguem finalmente ao cumprimento da finalidade e ao fruto da existenciação dos seres. Nosso autores concebem a aniquilação do mundo filosoficamente; sua
imamologia lança um desafio a esta eventualidade. A escatologia xiita presidida pela figura do Qa’im e seus companheiros (como a escatologia zoroastriana o está pela figura do Saoshyant e seus seguidores) não separa a ideia da “ressurreição menor” que é o êxodo individual, da ideia da “Grande Ressurreição” que é o advento do novo Éon.
Acaba-se de assinalar a identificação que os pensadores xiitas estabelecem entre o Imam Esperado e o Paráclito. Esta identificação revela uma convergência surpreendente entre a concepção profunda do xiísmo e o conjunto de tendências filosóficas que no Ocidente, dede os joaquinistas do século XIII até hoje, guiou a ideia paraclética e estabeleceu um caminho para pensar e operar em função do reino do Espírito Santo. Se deixado passar inadvertido, de fato poderia ter grandes consequênicias. Como já dissemos, a ideia fundamental é que o Imam Esperado não trará um novo livro revelado, uma nova Lei, mas revelará o sentido oculto de todas as Revelações, pois ele mesmo é essa Revelação das Revelações enquanto Homem Integral (Insan Kamil, Anthropos Telios), o esotérico da “Realidade Profética Eterna”. O sentido da parusía do Imam Esperado é a revelação antropológica plena, aflorando do interior do homem que vive no Espírito. Isto quer dizer, em última instância, revelação do segredo assumido pelo homem, esta é a carga que, segundo o versículo corânico 33/72, os Céus, a terra e as montanhas haviam renunciado. Ora, vimos que desde a origem, desde o começo do ensimanento dos Imames, a imamologia interpretou este versículo em relação ao seu próprio segredo, a Wylayat. A realidade é que o mistério divino e o humano, o mistério do anthropos, o mistério da haqiqat mohammaddiya, são o único mistério.
Consideramos aqui apenas um reduzido número de aspectos oferecidos pelo pensamento xiita duodecimano. São suficientes, no entanto, para fazer patente sua condição de Filosofia Profética emanada das premissas do Islã enquanto Religião Profética.
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